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Limitação constitucional do poder de tributar: Uma análise histórica

Autor: Carlos Eduardo Machado Pires

Introdução

Não é um exagero afirmar que a história da tributação se confunde com a própria história dos Estados, como sociedades organizadas, uma vez que, segundo Machado e Balthazar, “a causalidade entre tributação e bem comum sempre foi uma constante histórica, evoluindo tão somente a própria concepção de bem comum a justificar a tributação.” (Machado e Balthazar 2017, pág. 224)

Durante a Antiguidade, os Estados, na concepção de Maquiavel como união de homens sob a autoridade de um governo, utilizam a força e hostilidade para extrair riquezas e recursos naturais dos povos vencidos como recompensa das despesas oriundas das guerras expansionistas.

Além da pilhagem, os líderes das Grandes civilizações antigas cobravam tributos dos povos conquistados como forma de sustentação e desenvolvimento dos povos vitoriosos, expansão de seus exércitos e como demonstração de dominância sobre os vencidos.

 A cobrança de tributo de povos e nações derrotadas não era uma exclusividade das civilizações ocidentais antigas. No século VIII, as nações orientais também utilizavam da pilhagem e expropriação de terras e bens dos povos vencidos como recompensa de guerra, prática rechaçada pelo Califa Omar II, o mais influente líder mulçumano de sua época.

Ao condenar tais atitudes predatórias, o Califa argumentou que a pilhagem seria uma “política de visão limitada”, ao revés, a manutenção de serviços públicos básicos aos povos conquistados e a proteção das províncias, mediante uma cobrança periódica como contraprestação, denominado imposto territorial ou kharadj, seria uma política mais benéfica aos vencidos e lucrativas, a longo prazo, aos conquistadores.

Neste contexto, Cohen explica que a relação entre conquistadores e conquistados evoluiu da “política” da pilhagem para a “política” do tributo” (Cohen 2015, pág. 298).

É certo dizer que as orientações do Califa Omar levaram séculos para serem integralmente compreendida e aplicada, pois em boa parte da idade média, as cobranças mantiveram-se atreladas essencialmente ao poder tirano dos Soberanos, exigidas sobre uma parcela da produção de seus súditos.

O surgimento dos tributos, revestidos de uma concepção mais aproximada do modelo atual, saindo de uma ideia de confisco e expropriação do bem particular para uma noção de tributação consentida é produto das revoluções liberais ocorridas nos séculos XVII e XVIII, em especial e principalmente da Revolução Industrial, impulsionada pelos ideais da Revolução Francesa. (Machado e Balthazar 2017, p. 229–230).

Nos tempos contemporâneos, os Estados modernos exigem do seu povo, por meio de tributos, os recursos necessários para aplicá-los em serviços públicos e buscar as melhorias sociais, assim suportando os gastos contraídos em nome da coletividade.

Não obstante, quer seja na antiguidade, na idade média ou nos tempos modernos, a relação entre o contribuinte e o estado sempre foi pautada na coercitividade da obrigação, sendo o tributo, portanto, uma clara e inequívoca expressão de poder (Machado e Balthazar 2017; Oliveira e Rangel 2018).

O objetivo deste artigo é, portanto, transpassar suscintamente, sem pretensão de aprofundar ou esgotar o tema, sobre o surgimento da limitação constitucional do poder tributário estatal como forma de proteção dos direitos fundamentais do homem.

Motivação do limite ao poder de tributar

A relação entre conquistadores e conquistados evoluiu da “política” da pilhagem para a “política” do tributo, uma vez que as requisições forçadas, desregradas e sem contrapartida passaram a ser vistas como uma forma destrutiva da atividade produtiva.

Nos dizeres de Assoni Filho (2003, p.182), “Tais exações tirânicas foram plantando na coletividade a ideia de limitação a esse poder de tributar, de modo que a tributação somente seria legítima se devidamente autorizada por aqueles que efetivamente a suportassem..

Assim, restava latente o sentimento de que a intervenção estatal não poderia ser ilimitada, pois o Estado, ao valer-se de sua soberania e de seu poder de mando (ius imperii), deveria objetivar à promoção do bem comum, legitimando suas ações, principalmente as de cunho arrecadatório, com o consentimento daqueles que suportarão de fato esse encargo e deles se beneficiarão.

Tal consentimento seria dado pelos representantes eleitos pelos cidadãos, e seria materializado em uma lei. Essa lei serviria ao mesmo tempo de limitação à intervenção estatal na liberdade e propriedade individuais e seria a expressão da vontade popular que, em última análise, legitimou tal intervenção.

Assim, surge o princípio da legalidade tributária, pois sempre que o Estado tiver que intervir na esfera privada, mediante a tributação, o fará com base em uma lei formal elaborada pelos representantes eleitos pelos cidadãos-contribuintes, que será a tradução do consentimento destes. (Assoni Filho 2003, pág. 182)

No entanto, o processo evolutivo que resultou na legalidade tributária plena e na limitação do poder de tributar, tal como a conhecemos hoje nas principais nações democráticas do mundo, foi longo e moroso, tendo sua semente plantada na Carta Magna da monarquia inglesa do século XII e se consolidando em toda a Europa apenas no século XVIII, após a revolução francesa e a declaração dos direitos dos homens em 1798, onde, a partir de então, começou a se espalhar para o restante do mundo.

Carta Magna

No início do século XIII, O Rei João Sem Terra, suplente do Rei Ricardo Coração de Leão que liderava as cruzadas, duplicou a cobrança de impostos para financiar os exércitos dos cruzados e para manter seu próprio exército, uma vez que não pretendia devolver o trono ao Rei Ricardo.

Exauridos das cobranças abusivas e arbitrárias, os Barões da Inglaterra e as classes dominantes, revoltas, pegaram em armas e coagiram o Rei João Sem Terra a assinar, em 15 de junho de 1215, a Carta Magna, precursora das limitações constitucionais dos poderes do Monarca e do Estado e considerada o antecedente direto das Declarações de Direitos dos Homens, que surgiria apenas 5 séculos mais tarde.

Surge, neste momento, um novo modelo de governo, sem autoritarismos e submissão ao poder exercido pelo monarca, cria-se uma visão constitucional, onde a relação entre Estado e contribuinte é considerada como jurídica. Este, inegavelmente foi o traço básico peculiar à história dos direitos fundamentais positivados, essencial para o desenvolvimento da Democracia moderna, e importante para os avanços das civilizações na construção da cidadania e do Estado de Direito. (Oliveira e Rangel 2018, pág. 60–61)

Em matéria tributária a Carta Magna, dispunha em seu artigo XII que as obrigações tributárias somente existiriam se houvesse o prévio consentimento dos súditos e segundo razões justificadas e razoáveis, tendo havido desta forma as primeiras limitações do poder estatal sobre a incidência de impostos em face dos contribuintes.

Desse modo, formalmente, o Rei não mais poderia impor obrigações de cunho tributário apenas com base em sua autoridade ou arbítrio, pois tais obrigações somente seriam legítimas se o necessário consentimento popular se manifestasse. (Assoni Filho 2003, pág. 183–184)

Nascia, portanto, o sistema representativo moderno, sendo que no reinado de Edward III estabeleceram-se os três princípios fundamentais do governo inglês: a ilegalidade dos impostos cobrados sem o consentimento do parlamento, a necessidade do concurso das duas câmaras para mudar a lei e o direito reconhecido aos comuns de investigar os abusos e de acusar os conselheiros do rei (Cohen 2015, pág. 314)

O vínculo histórico entre a Magna Carta e o princípio da legalidade tributária atual é evidente tão somente na Inglaterra, pois, nesta a consagração da legalidade tributária se deu de forma gradual e contínua, a partir de uma tradição consuetudinária que tem o referido documento como um dos marcos mais importantes, reforçado pela Petition of Rights (1628) e do Bill of Rights (1689), documentos que sedimentaram o consentimento dos súditos nas questões tributárias.

Em outros países Europeus, no entanto, a necessidade de uma autorização popular para imposição de tributos, que de igual maneira possui raízes em costumes culturais e históricos, sofreu retrocessos, em especial durante a Alta idade Média, na época do Absolutismo, sendo revertido e convergindo para a legalidade tributária nos moldes ingleses apenas com as revoluções liberais dos séculos XVIII, em especial, a Revolução Francesa (Ribeiro 1999).

Revolução Francesa e Carta de Direitos do Homem

Saturados com as arbitrariedades e com a pesada carga de sustentar a monarquia com o pagamento de altas taxas de impostos, em 1789 a Revolução Francesa encontrou fértil campo de desenvolvimento.

Neste cenário, para Cohen (2015 p.312) “a monarquia acabou, por outro viés, desaguando na sangrenta Revolução Francesa de 1789, desencadeada, (…), por motivos fiscais”.

Tendo como lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade, a população revolta buscava a instauração da república, onde deixaria de ser obrigados a servir aos interesses do governante, e ao reverso, o governo é que passaria a servir aos interesses dos cidadãos, garantindo os seus direitos e deveres. (Oliveira e Rangel 2018, pág. 66–67)

No afã da Revolução Francesa, em 26 de agosto de 1789 surge a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que representou um notável progresso na afirmação de valores fundamentais da pessoa humana e cerne das constituições nacionais para impor limites na atuação outrora arbitraria pelo Governo em relação aos cidadãos, e para descentralizar o poder, instituindo parlamentos.

Este instrumento foi essencial para a evolução social e para consolidação de sistemas democráticos, uma vez que foi o primeiro documento que definiu os direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana, impondo limitação ao poder estatal e estabelecendo a divisão dos poderes, que até o presente momento estava centralizada nas mãos dos monarcas. (Oliveira e Rangel 2018, pág. 67)

Com a Declaração de Direitos do Homem em 1789, o constitucionalismo passou a ser firmado com o objetivo de tutelar direitos que não poderiam mais sofrer intervenções arbitrárias e ilimitadas do Estado, consagrando neste momento o Estado Democrático de Direito.

Nesta senda, Machado e Balthazar (2017, p.229) defendem que “a nova dogmática dos direitos humanos confirma que o imposto deixa de ser uma forma de opressão da liberdade, passando a representar o próprio preço da liberdade”.

De fato, foi a partir da legalidade tributária como garantidora dos indivíduos contra uma tributação arbitrária que aos poucos se incorporaram outros princípios de proteção individual, resultando em um paradigma jus filosófico de que o Estado não é a lei, mas, igualmente, submete-se a ela e ao Direito.

Tributação no regime democrático contemporâneo

Como as Constituições dos estados democráticos atuais foram formuladas tendo como fonte inspiradora a Constituição Francesa, especialmente as constituições ocidentais elaboradas durante o século XIX, o princípio da legalidade tributária, e consequentemente a limitação do poder de tributar foi cada vez mais se difundindo, a tal ponto que, todos os países na atualidade afirmam em seus textos constitucionais que de uma forma ou de outra os tributos deverão ser aprovados pelos órgãos legislativos competentes para se tomarem exigíveis. (Assoni Filho 2003, pág. 185)

Ou seja, nos Estados Democráticos de Direito, a tributação é reflexo da soberania popular e encontra seus fundamentos e limitações nas constituições nacionais.

Deste modo, no mundo contemporâneo, o imposto resulta da relação jurídica tributária que se traduz na relação entre o Estado e o contribuinte, sendo uma prestação pecuniária, compulsória e unilateral, a título definitivo, sem caráter de sanção, devida ao Estado ou outros entes públicos para a realização de fins públicos. (Mariano 2020)

Portanto, têm-se que a função do Estado Democrático de Direito, conforme a Declaração dos Direitos do Homem, é assegurar a felicidade dos seus cidadãos e satisfazer suas necessidades mais básicas, sendo a concepção de Estado Tributário Distribuidor a mais indicada, e adotada pelos estados contemporâneos, para que o Estado cumpra seu papel social por meio da tributação dos que mais possuem para repassar — via serviços, bens ou mesmo pecúnia — aos que mais necessitam (Moreira e Machado 2015, pág. 89–90)

Conclusão

Este trabalho demonstrou que a forma de tributar e a finalidade dos tributos evoluíram ao mesmo passo em que as relações sociais se tornavam mais complexas e os sistemas de governos amadureciam, se transformando em regimes democráticos.

Desde os primórdios da civilização, a tributação tem um caráter compulsório, situação que permanece nos tempos atuais. No entanto, a imposição arbitrária e as penalidades excessivas não têm mais espaço na atualidade e nos Estados Democráticos de Direito.

A limitação do poder de tributar teve sua semente plantada ainda no século XIII, mas para se tornar plenamente efetiva, foi necessário, séculos depois, uma revolução que alterou, além de questões tributárias, toda a forma de governo que o mundo conhecia.

O conceito, forma e finalidade do tributo se modificou ao longo do tempo, conforme evoluia a concepção de Estado Nação, de forma que o conceito primitivo de tributo, arbitrário e impositivo, não se assemelha com o conceito atual, de consentimento, pois o estigma de servidão e submissão de outrora, que caracterizava o tributo nos tempos remotos, não mais existem. (Moreira e Machado 2015, pág. 72)

Portanto, apesar de não esgotar o tema que demanda estudos muito mais aprofundados, o presente trabalho possibilita um primeiro degrau para construção uma visão histórico-evolutiva da relação entre o Estado e a Tributação.

Referências Bibliográficas

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Cohen, Sarah Amarante de Mendonça (2015): Breve história do tributo na civilização ocidental: da pilhagem à legalidade. Em: Meritum. DOI: 10.46560/meritum.v10i2.5446.

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Machado, Carlos Henirque; Balthazar, Ubaldo Cesar (2017): A reforma tributária como instrumento de efetivação da justiça distributiva: uma abordagem histórica. Em: Seq. Est. Jur. Pol. 38 (77), pág. 221–252. DOI: 10.5007/2177-7055.2017v38n77p221.

Maquiavelo, Nicolás (Ed.) (1971): El príncipe: Ediciones Ibéricas y LCL.

Mariano, Américo Ernesto (2020): O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA. Sua importância no âmbito das garantias dos contribuintes. JuLaw. On-line Disponível em https://julaw.co.ao/wp-content/uploads/2020/11/AMERICO-MARIANO_O-PRINCIPIO-DA-LEGALIDADE-TRIBUTARIA_JULAW.pdf.

Moreira, André Mendes; Machado, Sophia Goreti Rocha (2015): Conceito de tributo e sua divisão em espécies. Em: Revista Forum de Direito Tributário 13/76, pág. 71–90. On-line Disponível em https://sachacalmon.com.br/wp-content/uploads/2016/07/2015-conceito-de-tributo-e-sua-divisao-em-especies-rfdt-761.pdf.

Oliveira, Lucas Rocha; Rangel, Tauã Lima Verdan (2018): DIREITO TRIBUTÁRIO UMA ANÁLISE ACERCA DA HISTÓRIA DO PODER DE TRIBUTAR. Em: Pequenos Escritos Interdisciplinares: Diálogo, Ensino & Direito 28, pág. 56–85.

Ribeiro, Ricardo Lodi (1999): O FUNDAMENTO DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA: DO AUTOCONSENTIMENTO AO PLURALISMO POLÍTICO. Em: William B. Smart e Donna T. Smart (Ed.): Over The Rim: Utah State University Press, pág. 191–199.

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